Desde a época de Freud, alguns psicanalistas tentam adaptar a clínica psicanalítica aos chamados casos “difíceis” ou “incuráveis” pelas técnicas tradicionais. Sandor Ferenczi, já questionava se o fracasso terapêutico seria sempre uma “resistência” do paciente ou se não seria antes uma dificuldade do próprio analista em adaptar-se às particularidades de cada sujeito no plano do método. Chamava a atenção dos psicanalistas da época para que evitassem a hipocrisia profissional, a frieza e a intelectualização e procurassem agir com uma autêntica simpatia, pois achava que os pacientes adivinhavam, de maneira quase extralúcida, os pensamentos e as emoções do analista.
Muitas vezes, o analista necessita de uma disponibilidade interna para improvisar técnicas criativas dentro do setting analítico. É que alguns pacientes requerem uma atenção diferente tirando o analista de sua neutralidade habitual. Desorganizado em seu arranjo neurótico e perturbado em sua aparente calma, o analista vê-se obrigado a lidar com a ação perturbadora e turbulenta do núcleo psicótico que eclode numa relação analítica com alguns pacientes.
Autores como Winnicott, Bion, Joyce McDougall e mais recentemente, André Green, se preocuparam com as formas mais primitivas do funcionamento mental e com a necessidade do analista estimular durante o tratamento o processo de simbolização, pois acreditam que o cerne do problema de muitos casos clínicos reside na dificuldade do mecanismo de recalque nesses pacientes, cuja conseqüência é uma experiência avassaladora e insuportável diante da realidade externa.
Sabemos que o processo de simbolização requer uma identificação secundária do sujeito com o objeto representante da lei que funda a cultura e impede a atuação das tendências edípicas. Porém, essa identificação pressupõe também uma perda de status e de ilusão de completude narsícica, pois foi resultado de um “não” edípico que significou, dentre outras coisas, uma grande proibição trazendo sentimentos de abandono e rejeição.
A identificação secundária constituirá um Superego por vezes mais “sádico”, “rígido” e “tirânico” do que a própria realidade que o constituiu. Este superego pode tornar-se tão ameaçador que a impressão que se tem é que ele embota a capacidade do sujeito de percepção e tradução da realidade externa.
O Ideal de Eu, nesses casos, pode ficar prejudicado pela incapacidade desse sujeito interiorizar os pais como modelos ideais a serem imitados. Em conseqüência, não haverá uma recaptura narcísica, mas uma regressão ao estágio de Eu Ideal, onde o sujeito permanecerá protegido do sofrimento do fracasso edípico ou do intolerável encontro com o Princípio da Realidade.
Sabemos que a passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade requer uma ação psíquica do sujeito no sentido de conseguir adiar a satisfação alucinatória de desejo para a sua realização na realidade concreta e objetiva. Winnicott diz-nos que essa transição é potencialmente dolorosa, pois envolve uma aceitação do mundo do não-eu e uma relação com o mesmo. A ação psíquica aqui seria o sujeito construir internamente uma área intermediária entre a fantasia e a realidade onde ele vai criar, através do jogo ou brincadeira, as primeiras experiências culturais, encontrar o seu verdadeiro self e tornar-se capaz de admitir a realidade externa. Winnicott sugere um caminho cujo entendimento teórico nos leva a fazer uma analogia com a tese de Freud sobre o jogo do carretel onde a criança, ao brincar com o aparecimento e desaparecimento (fort-da) do carretel, estaria tentando elaborar internamente a ausência do objeto amado. Ou seja, o brincar constitui, em ambas teorias, uma forma de o sujeito defender-se da angústia das perdas ou separações.
Se pensarmos que o aparelho psíquico é capaz, desde muito cedo, como afirma Winnicott, de buscar formas de defender-se da ansiedade através do brincar, veremos que, desde o início, o ego pode acompanhar o desenvolvimento do superego e integrá-lo como Lei, suportando as perdas e separações, sem torná-lo, necessariamente, um representante rígido, sádico, persecutório e temido.
Não obstante, isso nem sempre acontece. Vemos na clínica que muitos pacientes nos chegam aparentando uma grande fragilidade egóica e uma grande incapacidade de lidar com a realidade externa. Penso que um dos papéis do analista é o de ajudar a esse paciente a suportar sua angústia, fazendo-o aceitar as perdas e separações, não como uma morte ou fim de uma ilusão, mas como uma possibilidade de perceber o mundo sob uma nova ótica.
O analista pode ajudar o paciente a fazer as pazes com sua castração, mostrando uma outra face do superego: um representante da lei, sim, porém, mais “camarada”, amigável e facilitador de uma relação do ego com o mundo externo. Um superego que possa dar espaço para o surgimento de um ideal de ego autêntico e mais próximo da realidade. Tenho recebido em minha clínica muitos pacientes que mal conseguem formular uma questão sobre seu sofrimento e que tudo que dizem é que vivenciam um vazio interno que lhes causa dor e uma grande sensação de angústia. Esses pacientes não conseguem fazer um narrativa sobre si mesmos e geralmente apresentam sintomas ligados a uma falta de afetividade, intelectualização, ou atuação (psicossomática ou no meio ambiente).
Noto nesses pacientes que aquilo que Freud descreveu como elaboração da ausência-presença do objeto, através da metáfora do jogo do carretel (Fort-Da), não é vivido por eles ou o é com muita precariedade. Sabemos que esse jogo exige do sujeito uma ação criativa e singular, pois é justamente aí que ele vai entrar em contato com os seus afetos de amor e ódio em relação ao objeto e vai elaborar internamente o vácuo deixado pela ausência concreta desse objeto. Paralelamente a esse estágio de angústia de separação, Winnicott nos fala de um comportamento observado em crianças, em que elas utilizam-se de um fenômeno ou objeto (fenômeno ou objeto transicional) para defender-se contra a ansiedade do tipo depressiva numa fase de transição do princípio do prazer para o princípio da realidade. Esses objetos ou fenômenos transicionais simbolizariam algum objeto parcial, tal como o seio da mãe e, apesar de aparecerem em datas muito primitivas do desenvolvimento, podem reaparecer numa idade posterior quando a privação volta a ameaçar.
Tenho observado em minha clínica a capacidade de humor em alguns pacientes que se utilizam desta prática, principalmente nos momentos de medo, ódio, aflição e angústia. Noto que após cada observação espirituosa, e a conseqüente descarga do riso, ocorre uma tranqüilidade e se estabelece uma capacidade de pensar criativamente. É como se o excesso de impulso energético fosse descarregado do seu aparelho psíquico através do riso, aliviando o sujeito de uma carga muito grande de responsabilidade, ficando apenas o suficiente para ajudá-lo a formar o pensamento. Observo nos pacientes que possuem esse dom, que eles são mais aptos a suportar seus sofrimentos e encontrar saídas mais criativas para seus problemas.
Sobre o humor, Freud escreveu que, dentre outras coisas, este tem algo de libertador e também de elevação e grandeza, e que esta grandeza reside sobretudo no triunfo do narcisismo e na invulnerabilidade do ego à compulsão do sofrer. A pessoa estaria retirando a ênfase psíquica do ego e transpondo-a para o superego, e este se comportaria como um pai complacente mostrando a realidade externa para seu filho de forma lúdica e criativa.
Embora Freud nos diga, em 1905, que existe uma função defensiva no humor, em 1927, afirma que o humor seria a contribuição feita ao cômico pela intervenção do superego ... e ... se o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua origem no agente paterno. Ou seja, parece que o ato de defender o filho de um sofrimento desnecessário, apesar de ser uma maternagem, é também uma função paterna. Assim, existiria nessa “defesa” do ego uma solução criativa, não para negar ou fugir da realidade externa, mas para suportar o sofrimento advindo dela. Dando ao mundo hostil uma versão também humorística, o superego estaria preparando o ego para aquiescer à realidade externa, protegendo-o de uma angústia paranóide.
O superego estaria assim cumprindo uma função de introduzir o sujeito ao mundo externo regido pelas leis sociais e pela cultura sem tornar-se ameaçador ou persecutório. E o ego, identificando-se com a capacidade de humor do superego, introjetaria o mundo externo de forma mais suave, lúdica e criativa. Penso, deste modo, que se o humor é um dos mecanismos internos utilizados pelo ego para proteger-se da compulsão ao sofrimento e que, de certa forma, o ajuda a aquiescer à realidade externa, sem necessidade de negá-la ou cair num luto melancólico, poderíamos considerá-lo como um fenômeno transicional criado pelo sujeito, para estabelecer uma presença simbólica do objeto ausente ou da falta.
Considerando esta possibilidade, a experiência de humor estaria ajudando o sujeito a aplacar suas ansiedades frente à transição e adaptação para o princípio da realidade, e, como tal, poderia ser utilizado dentro do espaço transicional da terapia como um instrumento terapêutico a favor do analista para interagir ludicamente com o paciente.
Marisa Queiroz de Oliveira e Silva