segunda-feira, 24 de maio de 2010

Não é bem isso o que eu queria dizer...

     
           Alguns estudiosos da linguística defendem que o sentido das palavras só existe na medida em que há uma contraposição, uma diferença, uma outra possibilidade, uma particularidade. Nomear é diferenciar.
          Parece estranho, mas não é. Toda afirmação existe em oposição a uma não-afirmação, mais especificamente a uma negação.
          Muitos devem se lembrar daquele bebê da Família Dinossauro que invocava o papai Dino como "Não-é-a-mamãe". O "pai" só aparece por ser outro que não a mãe.
          Aprendemos com René Spitz em seu livro "O não e o sim" (No and yes. On the Genesis of Human Communication. International Universities Press, Inc. New York, 1957) que a primeira palavra com sentido semântico pleno utilizada pela criança é o NÃO, embora muitos pais e mães se encantem com os balbucios de seu filhote (papá, mamã) e disputem qual deles foi primeiramente nomeado.
          O conversar comum, cotidiano, progride e se prolonga através de mal-entendidos, desmentidos e correções, logo seguidas de novos dizeres, cada vez mais necessários: "Não é bem assim", "O que eu queria dizer mesmo é...", "Você não entendeu direito", "Exatamente o que aconteceu?", "Quando falei tal coisa, é porque...", "Como assim? Explique melhor"...
          Neste pequeno texto que estou escrevendo, cada parágrafo procura reforçar o anterior, re-afirmar a idéia, prevenir possíveis distorções no entendimento, convencer pela repetição, demonstrar o que foi dito, etc. A linguagem, definitivamente, é capenga e insuficiente para dizer tudo...
          Já em 1901, Freud publicou um delicioso artigo, intitulado Psicopatologia da vida cotidiana (Psychopathology of everyday life), no qual aborda o tema dos atos falhos.
          O conceito de ato falho (Fehlleistung, em alemão) não constava nos manuais de Psicologia e foi inventado por Freud. Na tradução inglesa, traduziu-se como parapraxis (parapraxia, em português).
          [Parapraxia, segundo o Houaiss, é um termo originado diretamente do grego, pela justaposição do prefixo "par(a)" com o substantivo "praxis" = ação. "Par(a)" tem muitas acepções: 1) 'proximidade': parágrafo, paraninfo, paratireóide, parenteral, parêntese, parótico, parótida; 2) 'oposição': paranomia, paradoxo; 3) 'para além de': parapsicologia, parapsíquico; 4) 'defeito': parafasia, paralexia, paramimia, paramnésia, paraplegia; 5) 'semelhança': parastaminia, parastêmone, parastilo].
          Na tradução brasileira das Obras Completas de Freud (Edição Standard, Editora Imago), encontramos a expressão ato falho, que pode ser, por exemplo, o esquecimento de algo importante, de um nome, o desvio em um trajeto predeterminado, a troca de palavras, etc. Distingue-se do erro comum, fruto da ignorância, imperícia ou conveniência. Ao cometer um ato falho, ninguém pode dizer "Eu não sabia" nem é possível renegá-lo: cai-se o véu, desvela-se algo oculto.
          Os atos falhos são também conhecidos como lapsos (do latim, lapsus = escorregar, escapar) , aparecendo em compostos:
           • Lapsus linguae = erro acidental ao falar, que altera o sentido que se pretendia dar à frase e que é interpretado (por influência da psicanálise) como expressão de pensamentos reprimidos;
          • Lapsus calami = erro acidental ao escrever (do latim, calamus = caneta, pena com que se escreve);
          • Lapsus memoriae = falta de lembrança; recordação defeituosa ou inexata.
          A descoberta freudiana do significado dos atos falhos é tão importante quanto sua teoria acerca da Interpretação dos Sonhos.
          Elementos dos sonhos e das parapraxias são indicadores de que existem conteúdos inconscientes, reprimidos, que saltam à luz por uma falha nas defesas do sujeito. Portanto, são um caminho privilegiado para o entendimento da vida psíquica normal, assim como as descobertas anteriores permitiram a Freud teorizar sobre as neuroses.
           Psicopatologia da vida cotidiana foi muito valorizado pelo criador da Psicanálise pois, segundo ele, "seria imune a objeções, já que os atos falhos eram fenômenos experimentados por qualquer pessoa normal".
          O artigo é muito interessante, tem uma linguagem clara e acessível, ilustrada com uma série infindável de exemplos. Há o orador que, ao abrir uma sessão solene, diz: "Tenho muito prazer em encerrar esta sessão!", deixando evidente seus desprazer em estar ali.
          A tese central de Freud é que os atos falhos, incluindo-se os lapsus linguae, são determinados por elementos que o sujeito não pretendia enunciar e seu significado oculto só aparece justamente na hora em que escapa ao controle da repressão. Assim, no velório, o cunhado diz para a viúva: "Meus parabéns", ao invés de dizer: "Meus pêsames". São eventos tão comuns e óbvios, por isso Freud os inclui como exemplos da psicopatologia da vida cotidiana.
          O enunciante é surpreendido pelo que acaba de falar. Pode até ocorrer que ele não perceba, mas o interlocutor não deixará passar em branco. Pode provocar risos ou desconcerto, dependendo do conteúdo revelado.
          O conceito de ato falho já caiu no domínio do senso comum, ou seja, quando alguém diz sim, querendo dizer não, o que vale é o sim! Vale o dito.
Elucubrado por Claudio Costa



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